segunda-feira, 5 de março de 2012

A Amizade e o Amor Segundo uma Lógica de Bazar

Desconfia-se do que é dado e pesa-se o que se recebe. A amizade e o amor parecem gerir-se, por vezes, segundo uma lógica de bazar. Já nem é considerado má-educação perguntar quanto é que uma prenda custou. Se esse preço é excessivo chega-se a dizer que não se pode aceitar. Recusar uma dádiva é como chamar interesseiro ao dador. É desconfiar que existe uma segunda intenção. De qualquer forma, só quem tem medo (ou corre o risco) de se vender pode pensar que alguém está a tentar comprá-lo. Quem dá de bom coração merece ser aceite de bom coração. A essência sentimental da dádiva é ultrajada pela frieza da avaliação.
A mania da equitatividade contamina os espíritos justos. É o caso das pessoas que, não desconfiando de uma dádiva, recusam-se a aceitar uma prenda que, pelo seu valor, não sejam capazes de retribuir. Esta atitude, apesar de ser nobre, acaba por ser igualmente destrutiva, pois supõe que existe, ou poderá vir a existir, uma expectativa de retribuição da parte de quem dá. Mas quem dá não dá para ser pago. Dá para ser recebido. Não dá como quem faz um depósito ou investimento. O valor de uma prenda não está na prenda - está na maneira como é prendada.
Hoje em dia, com a filosofia energumenóide e pseudojusta que impera, condensada no ditado ‹‹There is no such thing as a free lunch» é praticamente impossível oferecer um almoço a alguém. Todos os gestos de amor e de amizade são reduzidos ao valor de troca, a uma mera transacção em que é tudo avaliado, registado, saldado, pago a meias e de um modo geral discutido e destruído até estar esvaziado de significado.

Miguel Esteves Cardoso, in 'Último Volume' 

6 comentários:

Simplesmente eu... disse...

Belo texto.

Algures disse...

Também acho...

Um beijinho e uma boa semana!

Susy disse...

Mais uma vez, comewcei a ler e já sabia quem tinha escrito!

Subscrevo na totalidade! E acrecento que, a essencia de cada um, também se vê nas palavras que profere!

Beijinhos!

*

AC disse...

A verdade das relações..numa base de troca.

Eu gosto de pagar tudo fifty/fifty sei que a vida custa a todos e não gosto de me tornar um peso para ninguém.

beijinho* Somewhere boy

Algures disse...

Susy,

A escrita do MEC é de facto inconfundível. Concordo contigo, pois as palavras são um dos meios como nos revelamos perante as pessoas.
Bom voltar a ler-te! :-)

Beijinhos*

Algures disse...

Atenciosa,

Eu sou um pouco diferente a esse nível, apesar de no geral concordar numa certa medida. Tal como tu, também não gosto de ser um peso para alguém e também acho que a vida custa a todos, mas acho que devemos apreciar as situações caso a caso e também, consoante quem temos do "outro lado". Quando posso, gosto de oferecer algo e faço gosto nisso. Seja porque entendo que é a "cara da pessoa", seja por saber que ela vai gostar, seja porque ela não vai ter aquela oportunidade tão perto. Obviamente que nem sempre o posso fazer. Não espero algo em troca, nem quero uma compensação. Também não gosto que haja uma desproporcionalidade ou que não encontre um motivo para tal "oferta", assim como não gosto da obrigação de oferecer...
Acontece que muitas vezes, a diferença entre o que se dá e o que se recebe, não é ténue, seja na amizade, seja no amor, seja mesmo numa relação laboral e tal, pode fazer-nos pensar numa base de reciprocidade e questionar se de facto, não merecíamos um pouco mais, mas aí, não estamos a falar numa perspectiva material, mas humana, pois ninguém gosta de algo amorfo e sem reacção - queremos vida e expressão...

Beijinho*