domingo, 19 de fevereiro de 2012

No Amor Começa-se Sempre a Zero

Fazer um registo de propriedade é chato e difícil mas fazer uma declaração de amor ainda é pior. Ninguém sabe como. Não há minuta. Não há sequer um despachante ao qual o premente assunto se possa entregar. As declarações de amor têm de ser feitas pelo próprio. A experiência não serve de nada — por muitas declarações que já se tenham feito, cada uma é completamente diferente das anteriores. No amor, aliás, a experiência só demonstra uma coisa: que não tem nada que estar a demonstrar coisíssima nenhuma. É verdade — começa-se sempre do zero. Cada vez que uma pessoa se apaixona, regressa à suprema inocência, inépcia e barbárie da puberdade. Sobem-nos as bainhas das calças nas pernas e quando damos por nós estamos de calções. A experiência não serve de nada na luta contra o fogo do amor. Imaginem-se duas pessoas apanhadas no meio de um incêndio, sem poderem fugir, e veja-se o sentido que faria uma delas virar-se para a outra e dizer: «Ouve lá, tu que tens experiência de queimaduras do primeiro grau...» 


Pode ter-se sessenta anos. Mas no dia em que o peito sacode com as aurículas a brincar aos carrinhos-de-choque com os ventrículos, Deus Nosso Senhor carrega no grande botão «CLEAR» que mandou pôr na consola consoladora dos nossos corações. Esquece-se tudo. Que garfo usar com o peixe. Que flores comprar. Que palavras dizer. Que gravata com que raio de casaco hei-de usar? Sabe-se nada. Nicles.
Olha-se para as mãos e parece uma cena de transformação dum filme de lobisomens — de onde outrora havia aqueles dedos tão ágeis e pianistas, brotam dez abortos de polegares. E o vinho entorna-se só de pensar nisso. E as solas dos sapatos passam a atrair magneticamente todos os excrementos caninos da cidade. E a voz que era toda FM Estéreo da Comercial quando vai para dizer «Gosto muito de ti» fica repentinamente Abelha Maia.
Tenha-se 17 ou 71 anos, regressa-se automaticamente aos 13 — à terrível idade do Clearasil e das sensações como que de absorção. Quem se apaixona dá mesmo saltos no ar e diz «Uau!» quando o Pai deixa usar a pasta de dentes dele. Qual «ternura dos quarenta», qual bota da tropa cheia de minhocas! O amor é sempre uma anormalidade que provoca graves atrasos mentais.

Miguel Esteves Cardoso, in 'Os Meus Problemas'

4 comentários:

AC disse...

Continuo a achar que o mec é um génio da escrita.Fala do amor com uma verdade e perspicácia que me deixa completamente rendida...mais uma vez muito bonito este texto:)

Algures disse...

Estou de acordo contigo. O MEC fala do Amor de uma forma tão simples, que nos põe no "papel principal", como se fossemos intervenientes e já tivéssemos passado por toda a panóplia de situações que ele vai expondo. Simples e bonito... afinal, as coisas simples conseguem ser as mais belas!
O texto é bonito sim, eu acho é que ando a "abusar" do MEC Algures, qualquer dia ainda surge aqui um clube de fãs... :-)

Carmo disse...

Eu preferia que o MEC estivesse errado, mas está cheio de razão.

Algures disse...

Está sim Carmo e arrisco-me a dizer que todos os leitores deste blogue sabem isso...
...também não são muitos, mas quem é que já não passou por isto?!