Fazer um registo de propriedade é chato e difícil mas
fazer uma declaração de amor ainda é pior. Ninguém sabe como. Não há minuta.
Não há sequer um despachante ao qual o premente assunto se possa entregar. As
declarações de amor têm de ser feitas pelo próprio. A experiência não serve de
nada — por muitas declarações que já se tenham feito, cada uma é completamente
diferente das anteriores. No amor, aliás, a experiência só demonstra uma coisa:
que não tem nada que estar a demonstrar coisíssima nenhuma. É verdade —
começa-se sempre do zero. Cada vez que uma pessoa se apaixona, regressa à
suprema inocência, inépcia e barbárie da puberdade. Sobem-nos as bainhas das
calças nas pernas e quando damos por nós estamos de calções. A experiência não
serve de nada na luta contra o fogo do amor. Imaginem-se duas pessoas apanhadas
no meio de um incêndio, sem poderem fugir, e veja-se o sentido que faria uma
delas virar-se para a outra e dizer: «Ouve lá, tu que tens experiência de
queimaduras do primeiro grau...»
Pode ter-se sessenta anos. Mas no dia em que o peito sacode com as aurículas a
brincar aos carrinhos-de-choque com os ventrículos, Deus Nosso Senhor carrega
no grande botão «CLEAR» que mandou pôr na consola consoladora dos nossos
corações. Esquece-se tudo. Que garfo usar com o peixe. Que flores comprar. Que
palavras dizer. Que gravata com que raio de casaco hei-de usar? Sabe-se nada.
Nicles.
Olha-se para as mãos e parece uma cena de transformação dum filme de lobisomens
— de onde outrora havia aqueles dedos tão ágeis e pianistas, brotam dez abortos
de polegares. E o vinho entorna-se só de pensar nisso. E as solas dos sapatos
passam a atrair magneticamente todos os excrementos caninos da cidade. E a voz
que era toda FM Estéreo da Comercial quando vai para dizer «Gosto muito de ti»
fica repentinamente Abelha Maia.
Tenha-se 17 ou 71 anos, regressa-se automaticamente aos 13 — à terrível idade
do Clearasil e das sensações como que de absorção. Quem se apaixona dá mesmo
saltos no ar e diz «Uau!» quando o Pai deixa usar a pasta de dentes dele. Qual
«ternura dos quarenta», qual bota da tropa cheia de minhocas! O amor é sempre
uma anormalidade que provoca graves atrasos mentais.
Miguel Esteves Cardoso, in 'Os Meus Problemas'
4 comentários:
Continuo a achar que o mec é um génio da escrita.Fala do amor com uma verdade e perspicácia que me deixa completamente rendida...mais uma vez muito bonito este texto:)
Estou de acordo contigo. O MEC fala do Amor de uma forma tão simples, que nos põe no "papel principal", como se fossemos intervenientes e já tivéssemos passado por toda a panóplia de situações que ele vai expondo. Simples e bonito... afinal, as coisas simples conseguem ser as mais belas!
O texto é bonito sim, eu acho é que ando a "abusar" do MEC Algures, qualquer dia ainda surge aqui um clube de fãs... :-)
Eu preferia que o MEC estivesse errado, mas está cheio de razão.
Está sim Carmo e arrisco-me a dizer que todos os leitores deste blogue sabem isso...
...também não são muitos, mas quem é que já não passou por isto?!
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